Farmácias
Por A. M. Galopim de Carvalho
(do livro “Évora, anos 30 e 40“, Âncora Editora, 2021)
Eram várias as farmácias na Évora desses anos. A começar na Porta Nova, tinham importância, que eu me lembre, a Farmácia Rebocho Pais, a Farmácia Leão, na Rua João de Deus, a Farmácia da Misericórdia e a Farmácia Mota, ambas na praça do Geraldo, a Farmácia Oliveira, na Rua da República, a Farmácia Gusmão, sob a arcada, e a Farmácia Militar, no Convento da Graça.
A Farmácia do Rebocho, como se dizia e que conheci bem por dentro, era toda forrada de armários de madeira escura e de estilo, com portas de vidraça antiga, e balcão a condizer. Sobre este havia um enorme pote de vidro, com água, cheio de sanguessugas, o que sempre me impressionou. Usavam-se em certos tratamentos, para “chuparem o sangue ruim” do doente. Ficava que tempos a vê-las, encolhendo e esticando, sem cabeça nem rabo que se distinguissem, apoiando-se no vidro, ora com uma, ora com outra das suas extremidades em ventosa. “Tudo tem um fim menos as salsichas e as sanguessugas”, podemos dizer. Do lado de fora do balcão e, mesmo, na rua, ao lado da porta, lá estavam três ou quatro cadeiras de braços, das que se faziam em Monchique, onde, no Verão, à tardinha, vinham sentar-se, para conversar e “ver passar”, um médico e mais dois ou três senhores importantes na cidade. Atrás do balcão numa velha secretária, também ela de estilo, o velho Rebocho, bacharel em farmácia, careca como um monge budista, virava do avesso, para tornarem a servir, envelopes usados da correspondência que recebia. Era o filho, o senhor Fernando, calvo como o pai e que fazia o favor de ser muito meu amigo, que atendia os clientes e que, lá dentro, numa divisão a servir de laboratório, manipulava os remédios.
Medicamentos embalados vindos dos laboratórios, como hoje acontece às centenas, eram raros. Lembro-me do Veramon, do Optalidon e da Cafiaspirina para as dores de cabeça, do Bromil, para a Tosse, e das pastilhas Valda, para a rouquidão, e não esqueci o xarope iodotânico fosfatado e os execráveis óleos de rícino e de fígado de bacalhau, vendidos avulso, o primeiro como purgante e o segundo como fonte de vitaminas A e D.
Era ali que, a mando de minha mãe ia comprar o álcool, a água oxigenada, as tinturas de iodo e de mercurocromo, que fazia as vezes do actualíssimo Betadine. O cliente levava os frascos e o Sr. Fernando, com eles sobre um dos pratos da balança, vertia lá para dentro a quantidade do produto desejada. Era de lá que vinha o algodão iodado que a minha mãe nos punha no peito, no propósito de combater a tosse, e a água de flor de laranjeira que ela tomava, em pequenos golos, como ansiolítico.
Passei horas a ver o senhor Fernando a fazer “papelinhos” e ”hóstias” de criogenina, para baixar a febre, supositórios de manteiga de cacau, para o hemorroidal, xaropes para a tosse e pacotinhos de bicarbonato, de sulfato e de borato de sódio e outros.
Foi um tempo em que muitos medicamentos eram manipulados pelo farmacêutico e prescritos por ele ou, nas situações mais complicadas, pelo médico.
Com armários forrando as paredes, do chão ao tecto, esta divisão era um armazém de líquidos, pós brancos e corados, granulados, pedras disto e daquilo, ervas secas, pomadas, produtos com os quais se prepararam os medicamentos da minha infância.
Frascos, provetas graduadas e funis, para os remédios de beber; pedra de mármore branca, lisa de tanto uso, e espátula de corno, fina e flexível, para misturar pomadas; um almofariz de pedra, para reduzir, a pó, granulados e outros produtos sólidos; balança de precisão com lindos pesos de latão, dos maiores aos pequeníssimos nos quais só se mexia com pinça; tubos, caixas e caixinhas dos meus encantos…, era este o mundo do senhor Fernando durante a semana. Nos Domingos e feriados, era caçador.