Menu

Notícias

Estudo denuncia estagnação curricular e apela à reforma urgente do ensino farmacêutico em Portugal

O ensino pré-graduado das Ciências Farmacêuticas denota uma preocupante estagnação curricular e deve ser, urgentemente, reestruturado para alinhar a formação farmacêutica com as exigências contemporâneas da profissão e da regulação europeia.

Estas são as principais conclusões de um estudo patrocinado pela Sociedade Portuguesa de Farmacêuticos dos Cuidados de Saúde (SPFCS), o qual apresenta uma análise profunda e crítica ao ensino pré-graduado das Ciências Farmacêuticas em Portugal, com foco nos Mestrados Integrados em Ciências Farmacêuticas (MICF) das três principais faculdades públicas: Universidade de Coimbra (FFUC), Universidade de Lisboa (FFUL) e Universidade do Porto (FFUP).

Recorde-se que, desde 2005, o ensino dos profissionais farmacêuticos passou a ser regulamentado na União Europeia (UE) pela Diretiva 2005/36/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 7 de setembro, relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais. Estas alterações reforçaram o pendor clínico da intervenção do farmacêutico, ainda que sem colocar em causa natureza científica do ensino. Valorizam-se as capacidades de análise crítica, tomada de decisão informada e aplicação rigorosa da ciência ao medicamento e à saúde pública.

A investigação, que cobre o período entre 2010 e 2025, baseia-se na análise documental dos planos de estudo publicados em Diário da República e na avaliação dos conteúdos programáticos das unidades curriculares obrigatórias. Esta avaliação foi conduzida por pares farmacêuticos com formação diversificada, que aplicaram uma grelha de análise padronizada, centrada na relevância científica, regulamentar e profissional de cada unidade curricular, bem como na sua carga letiva e posicionamento no plano de estudos. Todos os autores são membros da SPFCS.

Entre as principais conclusões deste estudo, destaca-se a inércia dos planos curriculares, que permanecem praticamente inalterados há mais de uma década. As alterações verificadas são pontuais e concentram-se, sobretudo, no quinto ano do MICF, sem impacto significativo na estrutura global dos cursos. Esta estagnação contrasta com a evolução acelerada da profissão farmacêutica, marcada por novas exigências clínicas, regulamentares e tecnológicas.

Outro ponto crítico identificado pelo estudo é a falta de centralidade do medicamento nos planos de estudo. Apesar de ser o eixo estruturante da profissão farmacêutica, o medicamento continua a ser abordado de forma marginal e fragmentada, sem uma integração sólida ao longo dos cinco anos de formação. Áreas emergentes como farmacogenómica, farmácia clínica, avaliação de tecnologias de saúde e regulação do medicamento estão sub-representadas ou mal distribuídas nos currículos, o que compromete a preparação dos futuros profissionais para os desafios reais da prática farmacêutica.

Ato farmacêutico desvalorizado nos curricula

A carga letiva atribuída às unidades curriculares diretamente associadas aos atos próprios da profissão representa apenas cerca de 30% do total do MICF. Em contraste, áreas como microbiologia, bromatologia e análises clínicas continuam a ocupar uma fatia desproporcional do plano de estudos, apesar de não serem prioritárias segundo a legislação atual. Esta desproporção revela um desalinhamento com a Diretiva Europeia 2005/36/CE e suas atualizações, que definem os requisitos mínimos para o exercício da profissão farmacêutica na União Europeia.

O estágio curricular, que deveria ser um momento de consolidação prática e clínica, é tratado como uma unidade de aquisição de conhecimentos básicos, sem a profundidade necessária para preparar os estudantes para o exercício profissional. Além disso, o estudo aponta para a ausência de uma abordagem “One Health” nos currículos, limitando a formação em saúde pública e ignorando os desafios contemporâneos da saúde planetária e da literacia terapêutica.

Face a este diagnóstico, os autores do estudo propõem uma reorganização profunda dos currículos, com reforço das áreas de farmacologia, farmacoterapia e farmácia clínica, a criação de um ciclo de ensino clínico pré-graduado com simulação integrada, a atualização das áreas de sociofarmácia, farmacoeconomia e regulação, e a exclusão ou redução de unidades curriculares desajustadas face à prática profissional atual, nomeadamente as UC de bromatologia, hidrologia, toxicologia mecanística e matemática pura, as quais poderão ser opcionais ou passarem a integrar ciclos de estudos pós-graduados.

Este trabalho é o maior e o mais abrangente estudo alguma vez realizado em Portugal sobre o ensino pré-graduado das Ciências Farmacêuticas e constitui um alerta claro para as instituições de ensino superior e para os decisores políticos: a formação dos futuros farmacêuticos em Portugal exige uma reforma estrutural, centrada no medicamento, nas competências clínicas e na realidade da profissão. Sem essa mudança, o país arrisca-se a formar profissionais desfasados das exigências do sistema de saúde e das expectativas da sociedade, com as naturais consequências nefastas nos cuidados de saúde prestados.

Consulte o Sumário Executivo e as Conclusões no documento abaixo.